terça-feira, 31 de janeiro de 2017

Sessão Repeteco #2: Zootopia



Qual era seu desenho preferido na infância?

Em casa, os desenhos mais vistos eram os da Disney; desses, alguns eram os preferidos dos meus pais e do meu irmão. Digo que meus preferidos nunca foram os de princesa. Na realidade, achava-os meio sem sal... com exceção de "A Bela e a Fera" - porque eu achava a Fera fofinha.

Talvez porque a "Fera" da Disney, na verdade, seja uma mistura simpática de animaizinhos peludos.

Mas, de resto, como toda boa criança, morria de vergonha alheia das partes musicais dos desenhos e certamente não nasci querendo ser princesa/esperando o príncipe encantado. Não, meus desenhos preferidos de quando criança eram os de bichos: 101 Dálmatas e Robin Hood. E, claro, aquele desenho com aquela cena clássica que fez uma geração inteira chorar: o Cão e a Raposa.

Pensei que essa fase de preferir animais a gente tivesse passado há muito tempo - afinal, a gente amadurece, faz amigos, aprecia centros urbanos, contempla pessoas indo e vindo, entra para uma faculdade de Humanas e faz um curso sobre pessoas, psiquismo e sociedade...

Ou seja: a gente cresceu e passou a gostar de pessoas. E adeus, filmes de animais.


Então veio Zootopia.

Por sugestão do namorado. Nem botei muita fé.


Agora estou perdidamente apaixonada por esse desenho. 

Ele possui alguns elementos clássicos da cultura estadunidense que já foram disseminados nas repetidas sessões da tarde da vida, como a aspirante a policial que quer fazer do mundo um lugar melhor - mas não deixa de ser lindinho.

Naturalmente, já vi umas quatro vezes e estou caminhando para a quinta. Logo estarei na décima e terei decorado todas as falas conforme manda o figurino.

Como poderia resumir objetivamente o encanto que essa animação representou para mim?

A animação em si é de ótima qualidade, mas isso não é novidade quando se pensa em Pixar e em Disney. Assim, elencarei o que me chamou a atenção nessa fofura.


1. Bichinhos.





Transpor a cultura humana para mamíferos peludos e fofinhos é uma forma lúdica e encantadora de transmitir uma mensagem. Como já explicitei, tenho um fraco datado da primeira infância por histórias que envolvam animaizinhos.

2. A protagonista carismática e consistente.



Não é fácil criar um protagonista de quem se possa realmente gostar. É relativamente fácil nos identificarmos com ele porque toda a história é contada na perspectiva dele. Mas, amá-lo genuinamente, sentir-se positivamente representado por ele e estar convicto de que ele faz, de fato, parte de você? Isso não é lá muito fácil.

Mas a Judy Hopps (Pulinhos), além de ser um coelhinho fofo, é uma personagem muito consistente, isto é: suas qualidades e suas limitações são complementares, coerentes e humanas, tornando-a uma personagem verossímil. 
  • Ela tem um sonho, porém ninguém acredita realmente que ela seja capaz ou mesmo adequada para consolidá-lo. 
  • É, ainda, um sonho simples que habita o coração de muitos de nós - tornar o mundo um lugar melhor.
  • Esse sonho é realizável por meio de um caminho factível, embora não muito fácil - no caso, ser uma policial. Pertencer à lei. Tornar-se policial um caminho concreto que podemos identificar em nosso cotidiano, certo? É possível.
  • Só que ela não nasceu com o dom inato de realizar os próprios sonhos, apenas uma fé que a torna determinada a vencer os obstáculos que certamente serão colocados em seu caminho.
  • E, para realizar esse sonho, ela se depara com obstáculos e oportunidades.
Nesse ínterim, ela é muito parecida com Mulan - talvez mais fofinha e engraçada; ela não é automaticamente recompensada por pensar fora da caixa e querer ser policial - na realidade, o que ela faz é atrair o dobro de trabalho que normalmente teria se estivesse contente em fazer o que é esperado de um coelho - no caso, ser um fazendeiro e vendedor de legumes. Assim, enquanto seus irmãos coelhos não precisam se esforçar tanto quanto ela para vender cenouras, e seus colegas aspirantes a policiais e pertencentes a espécies privilegiadas para essa função (ursos, rinocerontes) dormem após uma longa sessão de treinamento, ela passa madrugadas treinando em dobro e se esforçando para compensar a defasagem que tem devido à sua constituição natural de coelha.

Três grandes qualidades suas: coragem, determinação e criatividade.

Cresceu em uma família constantemente numerosa e muito amorosa, que parece tê-la provido com estabilidade material e emocional, mas ela não quer permanecer ali, naquele seu mundinho: ela usa essa estabilidade como um combustível para ir além. Assim como seu sonho é extravagante e original, sua maneira de agir no cotidiano também acaba sendo - e isso se torna o diferencial para aproveitar as oportunidades que acabam surgindo.

Além dessas características básicas que a norteiam em sua jornada, Judy é jovial, engraçada e sociável, criando uma atmosfera mais leve em torno de si e incorporando essa personagem jovem, oriunda de uma família rural grande e alegre, fã de músicas pop contemporâneas e que se muda cheia de sonhos para a cidade grande.

Essa é a consistência de Judy Hopps: ela tem pontos fortes e fracos, erra e acerta, e o fato de ela ter uma idéia original não faz o destino lhe sorrir automaticamente.

Ela permite, com essa coerência de personalidade e de trajetória, que nos identifiquemos com ela e nos instiga a ter a mesma fé em nós mesmos e a mesma inventividade para lidar com a vida.

3. Uma parceria interessante.






Quando começa a aventura, Judy se depara com o sarcástico e astuto vigarista Nick Wilde, que só poderia ser... uma raposa! Pertencente a uma espécie que, no passado, caçou coelhos e, no presente, é rotulada (mesmo na cidade utópica) como desonesta e traiçoeira, Nick não parecia uma amizade promissora para a correta e idealista Judy, mas ela é simplesmente muito mente aberta para ter o mesmo medo de seus ancestrais ou o preconceito de outros mamíferos - então o que seria uma relação de puro estranhamento e inconciliáveis diferenças evolui para uma forte e inesperada amizade.

Nick não possui a mesma fé e o mesmo otimismo na vida que Hopps; ele é desiludido, sarcástico, focando apenas no que as relações sociais têm de pior e tirando proveito disso. Seu conhecimento malandro da cidade grande e seu desejo quase inconfessável de ter a fé que tinha quando criança esbarram na originalidade otimista e quase ingênua de Hopps - juntos, esses dois subestimados animais de pequeno porte realizam a façanha de salvar toda a cidade e a utopia que a sustenta.

Hopps e Wilde são diferentes em sua visão de mundo e em sua forma de lidar com vida, mas muito parecidos em sua essência e definitivamente engraçados. A relação entre coelho e raposa, que era muito paternal em Robin Hood, torna-se uma parceria cativante e um dos pontos altos da história.

4. Detalhes, muitos detalhes.






Posso imaginar, numa roda dos estúdios Disney, alguém dar a idéia de uma zootopia - um mundo utópico em que animais houvessem superado seus instintos e passassem a conviver em harmonia. É uma idéia louvável, não a mais fácil de se conceber - mas também não é tudo. O diferencial não é a genialidade (e simplicidade) da idéia em si, mas o aproveitamento dessa idéia por meio de atenção aos detalhes e construção de um cenário rico. Assim, temos, por exemplo, a incrível playlist que Hopps carrega em seu Mp3 Player a caminho de Zootopia; temos os DVDs piratas que são vendidos no centro da cidade; os meios de transporte utilizados por esses animais, os hábitos deles no meio urbano, o modo como se relacionam, a forma como a cidade é organizada para acolhê-los, além dos próprios distritos, que abrangem os mais diversos biomas.

O modo como os animais são antropomorfizados nessa história sem perder de vista as diferenças entre as espécies é somada a uma construção histórica das relações entre essas espécies, de forma que o que poderia ser uma simples narrativa policial ganha complexidade graças à riqueza do cenário.

5. Música?







Um  detalhe que tenho observado nos meus desenhos preferidos de infância (101 Dálmatas e Robin Hood) é que eles não são musicais. Quero dizer, as famosas músicas desses desenhos são, na realidade, parte da trama, e não um número musical propriamente. Roger é um músico/pianista que, de zoeira, bola o famoso refrão "Cruella, cruel!"; e "Oo-de-lally" é uma música cantada por um bardo no início, o bardo que irá nos contar a história. Hoje não tenho mais vergonha alheia das músicas - inclusive adoro escutá-las - mas é interessante constatar que o mesmo acontece com meu recém-favorito "Zootopia": a música-tema não é tocada em um número em que todos começam a cantar e a dançar do nada (como diz o Flynn Rider), mas é parte da playlist da Hopps - e também é um grande single daquela sociedade alternativa utópica gravada pela Gazelle, uma cantora pop (interpretada por Shakira) que inclusive virou aplicativo de celular!

6. A beleza da cidade.




Encantadora é a cena em que Judy se despede da família, seleciona a música-tema em seu Mp3 enquanto se aproxima da famosa Zootopia! Que cidade maravilhosa! 

7. Referências.





Certo, desenhos/animações costumam estar coalhados de referências, mas, convenhamos... quem não riu da cena do Mr. Big? Certamente, quem não viu um certo clássico que já é bastante imitado por aí...

8. O enredo.





A premissa da história é muito atual. De maneira lúdica, ela mostra uma divisão social entre presas e predadores - oprimidos e opressores - e revela como o medo instaurado por uma política terrorista reacende preconceitos já ultrapassados em uma sociedade utópica. Mostra o que acontece quando estamos incrustados em uma forma estagnada e estagnante de ver o mundo: nada muda e os fantasmas do passado afloram.

A sugestão é bem clara: superar nossos limites; não nos prendermos a preconceitos; abrirmo-nos a novas possibilidades. Assim, em uma versão lúdica e fófis de A Revolução dos Bichos, uma coelhinha pode ser autossuficiente e poderosa para salvar o dia; uma raposa pode se transformar em um herói confiável e melhor amigo da coelha; uma ovelha pode se alimentar do terror vivido por suas ancestrais para disseminar o medo, a discriminação e a crueldade.

Talvez, além de ser uma história sobre animais fofinhos com um cenário altamente imersivo, ela seja encantadora por ser uma animação cujos principais valores residem em coragem, ousadia e originalidade, acendendo em nós uma centelha que nos inspira em nosso dia-a-dia.

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