quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

O medo de ser incompetente na vida


Acho que esse post poderia ser uma continuação do que inaugurou 2016 porque faz parte da vibe na qual tenho embarcado. É mais uma daquelas vivências acompanhadas de reflexão, entendem?

Você tem que viver para crer e refletir para entender.

Tenho recomendado aqui no AQTUL alguns vídeos e, por se tratarem de palestras longas e densas, nem sei mais se o tema que quero abordar neste post aparece num desses que recomendei a vocês - em todo o caso, explico do que se trata: a Maria Rita Kehl, em uma de suas fabulosas palestras, fala sobre o medo de ser medíocre.

Basicamente, ela reflete, como uma boa psicanalista, sobre como funciona o modo de pensar humano. Segundo ela, muitos de nós acabamos deixando de produzir ou de realizar nossos sonhos por medo da mediocridade. Em outras palavras: mantemos em nossas mentes  nosso desejo de criar ou produzir algo; queremos pintar, queremos tocar algum instrumento, cantar, dançar, construir algo interessante, criar algo - mas deixamos de fazer e ficamos apenas sonhando com o dia em que fizermos e sobre como isso será magnífico.

E aqui ela pondera: por vezes, deixamos de concretizar algo pelo medo de nos descobrirmos piores do que supúnhamos - e se nós fizermos aquilo que tanto queremos e tanto amamos e descobrirmos que, afinal, não somos tão bons assim? E se formos apenas medíocres?

Essa psicanalista comenta que a História Mundial nos apresentou verdadeiros monstros das artes, da filosofia e das ciências - como Mozart - e que nos imaginamos tão bons quanto eles - não exatamente mundialmente reconhecidos -, mas que nós mesmos nos reconhecemos sonhadoramente como excelentes, dotados de um talento tão impecável quanto o desses gênios. Temos nós mesmos em alta conta, como se persistíssemos em nos ver soberbos naquilo que temos tanto carinho em fazer, embora não o façamos de fato. No ápice da nossa imaginação narcísica, é assim que nos enxergamos, mesmo que não declaremos isso ao outro. Mas... e se não formos essa última batatinha do pacote?

E se fizermos algo que não for bom?

E se fizermos algo que seja apenas... medíocre?

Medíocre, palavra que deriva de "média" - algo que se encontra na média, isso se não for muito aquém. A idéia de ser meramente mediano em uma sociedade individualista formada por milhões e milhões de pessoas é, com toda a certeza, de uma frustração sem precedentes para alguém em cuja imaginação era, até então, um gênio inigualável.

Em nossas cabeças, somos um verdadeiro supra-sumo de potencialidades inexploradas.

Na dimensão da realidade, entretanto, a coisa muda de figura. Os gênios são poucos, e os reis estão nus.

Lembram-se daquilo de que eu estava falando no outro post - sobre como a nossa memória procedural é mais "lerda" que a semântica? Sobre como teoricamente sabemos nadar, dirigir, andar de bicicleta, montar numa vassoura (não é, Hermione?), mas que, na prática, a coisa muda de figura? Afinal, não se aprende exatamente a fazer essas coisas lendo-se um livro - como lembrou J.K. Rowling em A Pedra Filosofal.

Assim é a vida - e assim são as coisas que amamos fazer. Podemos descobrir que nosso trabalho executado em uma vida inteira é, na realidade, apenas mediano e assim confrontar a triste realidade que se opõe a nossas convicções mais egocêntricas. Não somos tão bons quanto queremos acreditar.

Triste destino (e desatino) esse de nos tornarmos medianos quando, em nossas cabeças, somos simplesmente imortais.

Por isso, não dá para culpar aqueles que apenas vivem de sonhos (em vez de realizá-los), não é verdade? Preservam a própria soberania naquilo que tanto prezam!

Talvez - contudo, porém, todavia, entretanto - exista uma inquietação lá no fundo, uma dorzinha existencial de caráter crônico, profunda, irritante e quase imperceptível de algo em suas (ou nossas) cabeças dizendo: "soberano você é no campo das idéias... mas não é na realidade."

O pé que está situado na realidade permanece intacto, sôfrego e destituído de realizações, enquanto a cabeça obtém a excelência no campo das idéias.

Aí entra a "parte II" da história, que nem quando "O Retorno de Jedi" veio para dar um final feliz a "O Império Contra-ataca"; essa parte II vem com a seguinte máxima: o constante exercício leva à perfeição.

Você sonha em fazer algo; vai lá, faz e não fica tão bom. Na realidade, "tão bom" é eufemismo: fica chinfrim, sofrível. Você torce o nariz ou deixa como está - dá para o gasto. Sabe que falta algo - mas não sabe dizer o que - e deixa por isso, mesmo.

Então vou contar um segredo: é para ser assim. Tem que ser chinfrim. Porque é a primeira vez que você faz isso.

Tem que ser chinfrim, mesmo!

Primeiros acordes no violão?

Primeira apresentação da banda!

Primeira audiência no tribunal.

Primeira pintura a óleo!

Primeiro croqui.

Primeiro livro escrito.

Primeira composição.

Primeira organização de tarefas.

Primeira saia feita à máquina, sem bordado.

Primeira escultura de argila.

Primeira planilha funcional no Excel.

Primeiras lâminas histológicas.

Primeiro atendimento.

Algumas primeiras vezes serão fugazes; em outras, investiremos muito tempo em sua consolidação, perfeccionistas que somos. Ajeitaremos aqui e ali, de acordo com nossa velocidade e tempo de dedicação, até dar para o gasto - e, convenhamos, nem ficará tão bom assim. Mesmo que elogiem - ou que não falem nada e guardem aquele silêncio fúnebre e hesitante, carregado de significação - saberemos, bem lá no fundo, que falta algo. Mas, por alguma razão, não conseguiremos melhorar ali, naquele instante - foi o que deu para fazer, afinal.

É o que tem para hoje - disse-me um amigo, alguns anos atrás.

E então, por força do destino ou do pensamento, seremos convocados a realizar a mesma tarefa algum tempo depois - horas, dias ou mesmo um ano -, e então pensaremos em outras formas de realizar aquela mesma tarefa e em maneiras de melhorá-la; porque nosso cérebro passou todo aquele tempo trabalhando em stand-by, tentando resolver o que ficou incompleto. E seremos surpreendidos pelas maravilhas que a linearidade do tempo nos traz, que é o aperfeiçoamento de nossas habilidades. Simplesmente faremos melhor, com mais desenvoltura, mais beleza e mais completude! E, se fizermos por tempo ou em quantidade suficientes, seremos mestres naquilo.

Depositaremos nossa centelha única e individual nesse feito; saberemos esboçar uma parte de nós mesmos, fazendo essa coisa à nossa imagem. Talvez não sejamos exatamente um Mozart no assunto, mas quem se importa?

Quando nos descobrimos cada vez melhores naquilo que tanto amamos, a notoriedade é o que menos importa. Porque, naquilo que fazemos, encontramos um sentido - nós produzimos um sentido.

E Mozart pode ser simplesmente maravilhoso, mas o que seria do mundo se todos os outros músicos de todos os outros tempos deixassem de fazer o que fazem (ou fizeram) simplesmente porque não são (ou foram) tão geniais? Ainda bem que Faun não temeu a própria inferioridade, ou eu não teria o prazer de escutá-los como estou fazendo enquanto escrevo este texto.

A propósito:

- Unda não é exatamente uma Flauta Mágica, Bárbara.
- Mas é o que estou ouvindo agora, e é lindo.

Aquilo que é feito no plano da realidade sempre serve a alguém.

Então, quando me perguntam "mas e se não ficar bom?", respondo "quem disse que tem que ficar bom?"

(E eu digo isso para mim mesma, inclusive.)

Apenas faça. Acolha seu trabalho (mesmo aquém do esperado) como a um sujeito doente e cuide dele até se convalescer - porque isso acontecerá, já que você não desistirá enquanto não acontecer. Trate dele, limpe os ferimentos, troque as bandagens, permita que seu trabalho possa se recuperar.

Quando vi essa palestra da Maria Rita Kehl, senti um frio na boca do estômago porque a pergunta dela era certeira: "e se nos descobrirmos medíocres?" E foi jogada ao público e deixada em aberto de forma que parecia não haver solução para essa triste realidade; foi exposta, na minha opinião, como uma ferida aberta que não cicatriza. Era uma pergunta polêmica e aparentemente sem resposta, cujo objetivo consistia em fazer com que os espectadores se deparassem com seus receios mais profundos - foi como abrir o sujeito durante uma cirurgia e largá-lo aberto, sem realizar os pontos. 

Como se não houvesse saída!

Então me lembrei de todas as coisas que fiz sem medo simplesmente porque ou não eram tão decisivas para a minha existência ou era necessário que eu fizesse naquele prazo, sob pressão externa - e vi o quanto me aprimorei nelas. As primeiras, segundas e terceiras vezes davam para o gasto, mas o tempo trazia essa mágica que era me permitir o aprimoramento. Isso aconteceu com meus desenhos desde a infância; aconteceu com meus planejamentos de estudos, de carreira, de vida; até mesmo as planilhas de organização que faço hoje são muito melhores que as do ano passado. Até mesmo meu blog, ainda amador, está bem melhor que sua versão original. Minha escrita melhorou bastante em relação à que mantinha durante a adolescência.

Tudo melhora simplesmente porque nunca deixamos de aprender.

Então você está, neste exato segundo, diante da chance de fazer aquilo que mais valoriza em si mesmo, mas procrastina ou inventa desculpas; daí, finalmente, está entendendo que enrola devido ao famoso medo de "dar errado" - nesse caso, eis um conselho: lembre-se de todas as primeiras vezes medíocres e erradas que você teve e das vezes muito melhores que se seguiram a elas. E perceba que o dom de melhorar não é privilégio apenas de outros.


Créditos da imagem: Jenny Yu.

5 comentários:

  1. Sensacional Bárbara. Tem aquela máxima (que tem tudo a ver com esse post): é melhor fazer de qualquer jeito do que não fazer. A gente tem essa ilusão mesmo, de que é a última bolacha do pacote ~ até descobrir que vamos ter que lidar com muuuita frustração até as coisas sairem do jeito que a gente quer.

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    1. Essa máxima resume bem demais a idéia, Camila! Mil vezes fazer, sempre!! E vamos sobrevivendo a essas rajadas de realidade! hahaha

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  2. Sim, a melhor forma de sair do comodismo é simplesmente tentar, sem julgar o desempenho... criar pra se libertar, pra se expressar e se entender.

    http://marianaferrari.me/

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  3. Obs: pode mandar o link do vídeo? Não achei no youtube!

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    1. Oi, Mari! O link do vídeo é uma música chamada Unda, da banda alemã folk Faun. (https://www.youtube.com/watch?v=OGUeb2zeWqI); e os links das palestras citadas no post são:
      https://www.youtube.com/watch?v=fFDb8KR1rCM - Maria Rita Kehl
      https://www.youtube.com/watch?v=tMwYxv9xf4M - Leandro Karnal. Mandei os três porque não tinha 100% de certeza se o link pedido era mesmo só o do post. :)

      Beijão!

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