quarta-feira, 15 de outubro de 2014

A utopia que nos aprisiona...



No quesito realização, se eu tivesse que resumir os "autoboicotes" da vida, diria que são, basicamente:
  • Você querer fazer algo que não quer realmente;
  • Você querer realmente fazer algo e acreditar piamente que o sonho não é para você. Que você não é digno dele.
Até então, só me deparei com o primeiro aspecto; foi libertador me conhecer mais e entender coisas de que eu realmente gosto, e que não havia problema algum em não gostar de determinadas coisas, que não existe nada melhor do que o seu eu real - e o alívio que isso traz supera o eu ideal. Para quem ainda não entendeu: é uma situação por que todos nós passamos. Todos nós, de verdade.

Você percebe isso quando pensa que você mesmo não é o que você é agora, mas uma instância idealizada que você não mede esforços para atingir. Se eu fosse usar uma analogia cotidiana meio capenga, seria: eu não sou o cara que tirou média na prova, eu sou o cara que certamente teria tirado dez se tivesse estudado. Ou ainda: eu sou o cara bem-sucedido que certamente serei no futuro se fizer a coisa certa, mas que hoje não sou. Eu sou a pessoa que estará mais bonita caso eu me cuide mais. A pessoa que eu vejo no espelho hoje não sou eu; eu sou o que tenho potencial para serUm potencial que nunca atinjo realmente, e isso me traz angústia.
Deu para entender?
Acreditar que você é única e exclusivamente o potencial que busca atingir é sacrificar quem você é agora, é dizer que o que você é agora não é válido, que o seu eu de hoje é um nada descartável - e que você só tem de válido algo idealizado que um dia atingirá. Um dia que nunca será hoje. E essa insatisfação está em permanente deslocamento e nunca é saciada.
Queremos a profissão que nossos pais gentilmente sempre sonharam para nós - não que tivessem nos obrigado, mas certamente sonharam com ela! Disseram "nossa, isso combina com você! Você tem tanto talento para isso!" Existem aqueles que foram diretamente coagidos pelos pais, que foram obrigados a entregar em suas mãos o diploma universitário do curso com o qual nunca sonharam - quem não conhece alguém com uma história assim? Mas não precisa ser tão agressivo ou direto. Basta ser uma sugestão, uma sugestão que "aqueça a alma" - ou, na realidade, traga mais angústia e um balde de água fria: "eu sonhei que você fazia isso! Não é engraçado? Você ficaria muito bonito assim."
Mais indireto ainda: a preocupação financeira. A obsessão pelo dinheiro, a escolha pelo que queremos somada a uma preocupação financeira que não é nossa, que não nos pertence de fato. Está tudo bem, está tudo lindo ou ensolarado (ou nublado, porque gosto de dias nublados, idiossincrasia minha), exceto pelo respaldo financeiro que não é dos melhores - e isso é uma mancha na nossa felicidade. Mas, opa, essa preocupação era de quem, mesmo?
Queremos a aparência que julgamos ser a correta. Nada de gorduras, espinhas ou cabelo errado. Nada daquelas sardas, daquela pinta, nada daquelas pernas. Nada daquele semblante. Nem somos bonitos. Ou se somos, devemos tomar cuidado! E se acontecer algo que diminua nossa beleza? Não seremos mais especiais. Não podemos deixar de ser perfeitos.
Queremos ter as virtudes corretas. Desapegados na medida certa, inteligentes, alegres, carismáticos, eficientes, talentosos. Não pelos outros - por nós, claro! Ter a resposta pronta, algo sagaz e divertido, não ter neuras, mandar o número de mensagens correto para o paquera, nada excessivo ou distante demais, precisamos sempre nos destacar, precisamos ser os melhores. Porque, se não formos, nada seremos.
Queremos as roupas que idealizamos. De repente, por alguma razão, aquela na vitrine nos seduz; ou é bonita, ou está na promoção, mas o mais importante é que nunca precisamos dela antes ou sequer sonhamos com a possibilidade de sua existência até um segundo atrás; e a quantidade de apetrechos que possuímos, de roupas que temos no guarda-roupa nunca é suficiente! Mas não somos compulsivos, por vezes dizemos, não estamos endividados, apenas... ué, apenas queremos, por alguma razão misteriosa, aquela peça que não é realmente diferente daquelas três que já temos, mas inventamos que sim. Ou então é porque "estão usando"; se a moda aprova e eu não acho extravagante, eu necessito, eu me sinto bem, eu me encaixo no perfil correto. Quando eu obtenho aquela coisa, aquela roupa, eu passo a definitivamente ser eu.
Pelo menos até a próxima roupa que eu não possuir.
Queremos os equipamentos tecnológicos que são realmente dignos de nós. De repente, uma pequena distância da última geração tecnológica é uma grande distância para o potencial que alcançaríamos se tivéssemos acesso a isso. Porque aquela nova invenção é a nossa cara - não a de milhões de pessoas que pensam o mesmo. É a nossa cara. E não merecemos menos do que isso.
Queremos um cotidiano digno de nossos sonhos mais ambiciosos, em que realizamos aproximadamente três tarefas, oito atividades de lazer e vinte exercícios físicos diferentes. Além de ler seis clássicos literários, sete filmes franceses e ter fluência em dez idiomas. Menos que isso não serve. Mundo globalizado, correto? São múltiplas oportunidades, e só seremos nós mesmos se cumprirmos com o protocolo de absorver ao máximo essas oportunidades. Sem uma viagem ao exterior, duas línguas a mais e três museus visitados, não somos nada. Se dormimos o final de semana inteiro, perdemos tempo. Se não somos os próximos donos da Apple ou viajados pelo mundo como Amyr Klink, temos um desperdício de vida.
Queremos ter uma casa como a das fotos. É impensável qualquer coisa diferente disso.
E ainda ter atuado em três ONGs diferentes, para não dizer que nossos sonhos são apenas egoístas e mesquinhos.
E o mais importante: podemos fazer tudo isso! Somos nosso instrumento de realização, MAS nossa utilidade é apenas essa: o passo para o futuro onde mora nossa plena satisfação.
Percebe que existe uma diferença gigantesca entre isso e ter sonhos saudáveis? Nada contra querer realizar mil e uma coisas, mas quando a gente persegue isso sem preservar a satisfação cotidiana, a satisfação com o eu real - que é o do presente - perdemos nossa identidade. Perdemos nosso eu e, se o perdemos, misturamos os sonhos que seriam realmente nossos com os sonhos que outras pessoas depositaram em nós. Perdemos o nosso eu, então o muro que separa nossos sonhos dos sonhos do mundo desaba. E o impacto dói.
Quando nascemos, redondos, rosados e indefinidos, somos um mosaico de possibilidades que alimentam sonhos não-realizados de pessoas que há muito já habitavam a Terra e conheciam seus sabores e dissabores - nossos tutores, nossos cuidadores, nossos pais. O mais importante é entender que isso nem sempre é proposital, e que a causa dessa confusão não é a figura do pai ditador e engravatado que impõe uma determinada realização profissional. Esse processo não é tão cru assim.
A questão é que absorvemos os sonhos externos mais inocentes. Uma sugestão inocente, despretensiosa e por vezes implícita do ambiente, do meio externo, é capaz de inspirar em nós uma sede louca de realização e, unindo isso a uma carência afetiva e humana que sentimos, simplesmente internalizamos que só estaremos completos se perseguirmos um ideal que surgiu da figura idealizada de quem nos criou - e nos transmitiu conhecimentos de mundo -, uma figura idealizada que nós mesmos montamos a partir dessas pessoas.
Quem nos cria transfere um pouco de si para nós e isso molda nossa personalidade. Nós nos identificamos com alguns aspectos de quem nos cria e absorvemos isso em nossa personalidade - passa a ser nosso e passamos a apreciar isso. A diferença entre essa formação natural e saudável e a perseguição de um ideal que não nos pertence reside na nossa capacidade de aceitar o que somos realmente, no presente.
Em certa medida, conseguimos perceber quando estamos fora da casinha: é quando percebemos que nem toda idealização que carregamos é a que desejamos de todo o coração. É quando percebemos que perseguimos algo apenas porque estamos inquietos, e não porque o amamos de fato - não sentimos uma paz verdadeira nessa caminhada. É quando devemos romper com esse pacto que nós mesmos assinamos. E devemos buscar apenas o que nos pertence.
Em alguns momentos e para algumas pessoas é mais difícil notar esses padrões. Existem pessoas tão "despersonalizadas" que passam anos, décadas e vidas inteiras infelizes preenchendo um ideal que não é o seu e enraizando em si uma insatisfação que se manifesta em forma de toda sorte de transtornos físicos: os materialistas compulsivos, os profissionais infelizes, os cônjuges reprimidos. Reféns direta ou indiretamente do meio em que foram criadas, são pessoas que estão insatisfeitas mas, para elas, assumir essa insatisfação - que é tão profunda - é cindir com elas mesmas. Isso porque essa instância que não lhes pertence parasitou sua essência, ocupando boa parte do lugar - sem, contudo, ser esse "eu" de fato. Não são elas. Não são seu desejo. Essa coisa é a carente tentativa - feita de frangalhos - de preencher um ideal externo ao seu desejo pessoal. Mas que parasita tanto sua essência que, estando nela, é desagradável e, sendo abruptamente expulsa dela, é insuportável. É como arrancar violentamente um tumor e esperar que o corpo preencha sozinho a cratera que ficou.
Se existe solução para esses casos? Existe. Mas não sou eu quem as dá, certo? Podemos sempre ajudar. Mas somos nós quem enfrentamos nossas instâncias e ninguém poderá ou conseguirá fazer isso por nós.
Se isso é desolador? Para quem não consegue olhar para si mesmo de perto, para a essência verdadeira que habita o presente: é, é desolador, sim. É desolador saber que quem enfrenta seu pior monstro é você mesmo. Você se sente miserável, impotente, incapaz. É como se alguém, ao falar isso, o abandonasse à sua própria sorte com um desagradável tapinha nas costas: "boa sorte, meu chapa, agora é só com você".
Mas aqui: você não está sozinho. Nunca. Entendeu?
Sempre haverá amparo. Sempre haverá apoio. Se é você quem deve enfrentar é porque só você consegue, porque você tem potencial para isso. Eu não possuo o potencial que você possui para lidar com seus demônios, mas posso dizer que você jamais estará sozinho. De forma alguma. Haverá sempre um alguém nessa caminhada que o ajude a conseguir a força de que necessita.
Amigos. Passatempos. Terapeutas.
Bom, no começo do post, falei sobre o segundo "autoboicote", que é você querer realmente algo e achar que não conseguirá, que você não é digno dos seus sonhos. Tratarei dessa segunda parte depois.

Engraçado isso ter me ocorrido enquanto ouvia a música do Linkin Park - ainda não domino o inglês para saber a letra só de ouvir. Inconsciente, talvez?


"I've become so numb
I can't feel you there
I've become so tired
So much more aware

I'm becoming this
All I want to do
Is be more like me
And be less like you

I've become so numb
I can't feel you there
I'm tired of being what you want me to be"



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